Quem não paga o financiamento de um veículo está sujeito a uma temida medida judicial: a ação de busca e apreensão.
Essa ação, de tramitação muito rápida, geralmente tem um pedido de liminar para apreensão do veículo que, na maior parte dos casos, é concedida sem maiores dificuldades e logo de início, pelo magistrado, sem nem ouvir a outra parte, o devedor.
Apreendido o veículo, o desespero toma conta de quem teve o seu automóvel levado pelo Oficial de Justiça.
Em alguns casos, essa apreensão seguiu todos os procedimentos exigidos pelo Decreto-Lei nº 911/69, legislação específica aplicável a esse tipo de garantia (alienação fiduciária de bem móvel), e será melhor o devedor realizar o pagamento do débito para reaver o veículo.
Noutras circunstâncias, pode ser que tenha havido alguma irregularidade no procedimento da busca e apreensão, tornando-a nula e determinando a devolução do veículo, como expliquei nesse outro texto: O que os bancos não te contam sobre a busca e apreensão de veículo
Mesmo que seja constata alguma irregularidade, pode ter havido a venda do veículo, em leilão, pela instituição financeira que realizou a busca e apreensão.
E, nesse caso, surge a possibilidade daquele que foi prejudicado pela venda, o comprador que sofreu a busca e apreensão irregular, pedir uma indenização específica prevista na legislação que regula essa ação.
A multa de 50% prevista no Decreto-Lei nº 911/69
Essa multa de 50% está prevista no art. 3º, § 6º, do Decreto-Lei nº 911/69, que diz o seguinte:
§ 6º. Na sentença que decretar a improcedência da ação de busca e apreensão, o juiz condenará o credor fiduciário ao pagamento de multa, em favor do devedor fiduciante, equivalente a cinquenta por cento do valor originalmente financiado, devidamente atualizado, caso o bem já tenha sido alienado.
O dispositivo é de fácil compreensão. A penalidade é de cinquenta por cento sobre o valor originalmente financiado, com a aplicação de atualização sobre esse valor. E ela será exigível quando houver a improcedência da ação de busca e apreensão e o veículo apreendido já tiver sido vendido em leilão.
Essa venda poderá ter ocorrido porque, passado o prazo de 5 (cinco) dias que o devedor tem para realizar a purgação da mora, a lei permite (art. 3º, §1º) que o credor consolide a propriedade do veículo em seu nome, podendo vender o bem sem qualquer necessidade de esperar o desenrolar final do processo de busca e apreensão.
Essa venda, contudo, não isenta o credor de arcar com eventual prejuízo ao comprador que perdeu o seu veículo na busca e apreensão. Por isso, há uma multa em patamar razoável para que a instituição que procedeu com uma busca e apreensão de forma irregular arque.
Motivos que permitem a aplicação da multa
A multa é aplicada sempre que houver o julgamento da ação de busca e apreensão pela sua improcedência ou julgamento sem resolução do mérito, como na situação em que a notificação realizada foi feita de modo incorreto.
Sobre essas e outras irregularidades em ações de busca e apreensão, veja esses outros textos:
- Banco Itaú Card terá de devolver veículo apreendido irregularmente em ação de busca e apreensão;
- É possível que um carro apreendido em ação de busca e apreensão seja devolvido ao dono?
- Quem deve assinar a notificação que o banco envia quando as parcelas do financiamento do veículo não estão sendo pagas?
O Tribunal de Justiça de São Paulo, analisando caso em que a notificação foi feita de modo irregular e houve a venda do veículo, determinou a aplicação da multa, veja:
ALIENAÇAO FIDUCIÁRIA – Automóvel – Ação de busca e apreensão – Notificação devolvida com informação de “ausente” – Mora não comprovada – Sentença de extinção fundada no artigo 485, inciso VI, do Código de Processo Civil – Apelo da autora – Mora que decorre do vencimento do prazo para pagamento voluntário da prestação e se comprova mediante entrega da notificação – Certidão negativa – Requisito formal cujo preenchimento é indispensável à propositura da ação – Sentença mantida – Veículo alienado – Incidência da multa prevista no artigo 3º, § 6º, do Decreto-lei nº 911/69, abatendo-se o valor atinente às prestações porventura não pagas pelo réu – Apelação desprovida, com observação
(TJSP; Apelação Cível 1023391-16.2021.8.26.0071; Relator (a): Carlos Henrique Miguel Trevisan; Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Foro de Bauru – 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/05/2023; Data de Registro: 04/05/2023)
Essa multa impede outro tipo de indenização?
Não.
A própria lei, no § 7º, do artigo 3º, fala que a multa de 50% do valor financiado não exclui outras penalidades, veja:
§ 7º. A multa mencionada no § 6º não exclui a responsabilidade do credor fiduciário por perdas e danos.
Significa dizer que, a multa de cinquenta porcento do valor financiado é um começo de indenização, podendo, o prejudicado, comprovando os seus prejuízos, requerer outras indenizações.
A principal indenização: valor do veículo vendido
Quem perdeu um veículo em ação de busca e apreensão, de forma irregular, poderá pedir, além da multa de 50%, indenização pelo valor do veículo,
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO DE BUSCA E PREENSÃO. IMPUGNAÇÃO À GRATUIDADE DE JUSTIÇA. Pleito de assistência judiciária gratuita deduzido por pessoa física desempregada. Não demonstração da efetiva desnecessidade ao benefício. Deferimento que se afigura regular. Inadimplemento pelo não pagamento das contraprestações avençadas, que é tema incontroverso. Depósito da totalidade do débito contratual realizado pelo devedor tempestivamente. Cumprimento pleno da obrigação. Reconhecimento. Boa-fé objetiva que deve preponderar. Venda do veículo no curso do processo. Dever do credor fiduciário de indenizar o seu preço de mercado, apurado pela tabela Fipe, e pagar multa correspondente ao quantum originalmente financiado. Compreensão dos §§ 6º e 7º do art. 3º do Decreto-lei nº 911/69. Improcedência do pedido inicial. Recurso desprovido, com observação”.
(Apelação Cível 1014014-91.2018.8.26.0405; Relator (a): Dimas Rubens Fonseca; Data do Julgamento: 31/05/2019)
Haverá, dessa forma, a restituição do valor do veículo de acordo com o previsto pela tabela Fipe, e a data utilizada para a pesquisa do valor do bem é o da apreensão indevida realizada:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. BUSCA E APREENSÃO. LIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. RESTITUIÇÃO DO VEÍCULO INVIABILIZADA EM RAZÃO DA VENDA EXTRAJUDICIAL. CONVERSÃO EM PERDAS E DANOS. Necessidade de observância do valor de mercado do bem com base na tabela FIPE ao tempo da apreensão indevida e não do valor apurado com a sua venda extrajudicial, ocorrida de forma prematura e indevida. Irregularidade na venda extrajudicial atribuível apenas ao Agravante. Ausência de comprovação de que valor da venda extrajudicial abaixo do preço do mercado da época ocorreu por conta das condições efetivas do bem. Decisão mantida. RECURSO DO EXECUTADO NÃO PROVIDO”. (Agravo de Instrumento 2244773-49.2022.8.26.0000; Relator (a): Berenice Marcondes Cesar; Data do Julgamento: 03/11/2022)
Outros prejuízos que podem ser indenizados
Além da multa de 50% do valor originalmente financiado e o valor do veículo, apurado pela tabela Fipe, ao tempo da apreensão indevida, o prejudicado ainda poderá pedir outros tipos de indenizações, caso consiga comprová-las.
Quais seriam essas outras indenizações? Poderá pedir a depender das circunstâncias, indenização por danos morais, como no caso de utilização do veículo para transporte de algum parente em situação de doença que impede a sua locomoção; ou de alguma gestante; ou se a apreensão foi feita de maneira vexatória, etc.
Haverá, ainda, a possibilidade de pedir uma outra espécie indenização: lucros cessantes.
Imagine a situação de quem possuía um caminhão guincho e o utilizava para geração de renda e que esse veículo acabou sendo objeto de uma busca e apreensão irregular, tendo havido a sua venda.
O proprietário prejudicado poderá pedir indenização por lucros cessantes correspondente ao valor que deixou de ganhar com a venda indevida desse veículo, algo que o credor deverá ser responsabilizado a pagar.
Enfim, esses são apenas alguns exemplos de indenizações e de circunstâncias que podem acometer um caso concreto. Sendo, contudo, infinitas as hipóteses.
Quem paga o veículo no prazo legal e teve o bem vendido também pode pedir essas indenizações?
Sim.
O pagamento do veículo dentro do quinquídio legal, previsto no art. 3º, § 2º, é um direito do devedor.
Fazendo o pagamento de todas as parcelas do contrato, tanto as vencidas como as vincendas, o devedor tem o direito de reaver o veículo.
Nessa hipótese, entretanto, não há a constatação de irregularidade da ação de busca e apreensão, na verdade, ela ocorreu corretamente, o que poderia levar a crer na não aplicação da multa e demais indenizações previstas em lei, visto que o texto legal diz em “improcedência da ação de busca e apreensão”.
Ocorre, no entanto, que durante o prazo dos cinco dias, como o devedor tem a possibilidade de fazer o pagamento dos débitos (purgação da mora), não é possível que o credor faça a alienação do veículo. Ele deve aguardar esse prazo passar para poder realizar a venda.
Sendo feito o pagamento, caberia ao credor devolver o bem ao devedor.
Porém, em alguns casos, mesmo com o pagamento realizado, algumas instituições não devolvem o veículo e fazem a sua venda, o que, no entendimento da justiça, é motivo para a aplicação de todas essas penalidades acima explicadas, veja os julgados:
APELAÇÃO. Alienação fiduciária. Busca e apreensão de veículo. Sentença de improcedência. Purgação da mora pelo réu. Venda extrajudicial do veículo. Determinação de pagamento do valor do veículo acrescido de 50% de multa. Irresignação da instituição financeira autora. Purgação da mora pelo pagamento da integralidade da dívida conforme tabela de cálculo juntada na inicial, dentro do prazo legal. Ação improcedente. Venda prematura do bem a terceiro de boa-fé que impossibilitou sua devolução ao réu. Conversão em perdas e danos. Fixação de multa, conforme previsto na lei. Inteligência do art. 3º, §§6º e 7º da lei 911/1969. indenização conforme Tabela FIPE. Impossibilidade de utilização do valor do leilão como parâmetro. Não comprovação, também, do estado de conservação do automóvel. Tabela FIPE que se mostra como parâmetro imparcial e conhecido para aferição do valor de mercado do veículo. Juros e correção da dívida já calculados previamente pela instituição financeira e honorários sucumbenciais devidos pelo réu, em virtude do princípio da causalidade. Sentença mantida. Recurso não provido”. (Apelação Cível 1001719-19.2022.8.26.0005; Relator a): Lidia Conceição; Órgão Julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 11/11/2022)
Processual. Decisão que reconheceu a suficiência do depósito judicial realizado pelo réu, dando por purgada a mora, proferida antes da r. sentença e já atacada por meio de agravo de instrumento pela autora. Apelação não conhecida nesse ponto. Alienação fiduciária. Busca e preensão. Motocicleta. Sentença que, considerando o reconhecimento da purgação da mora, julgou improcedente a demanda e determinou a restituição do veículo. Venda abusiva, promovida quando ainda pendente discussão sobre os limites da purgação da mora. Autorização do art. 3º, § 1º, do Decreto-lei nº 911/69 que pressupõe ausência efetiva de ato de purgação da mora. Réu que depositou em juízo a totalidade do saldo devedor em aberto, conforme petição inicial. Obrigação do autor de pagamento da multa prevista no art. 3º, § 6º, do mesmo diploma legal. Irrelevância de o julgamento não ser tecnicamente de improcedência. Venda do bem a despeito da purgação da mora que é alcançada pela ratio legis do citado dispositivo legal. Sentença confirmada quanto a esse aspecto. Decisão em torno da purgação da mora que não equivale ao reconhecimento da impertinência da pretensão inicial, antes pelo contrário. Adequação do dispositivo da r. sentença, para constar o julgamento, com resolução de mérito, declarando a purga da mora. Apelação da autora desprovida, na parte conhecida, com observação”. (Apelação Cível 1003186-81.2018.8.26.0099; Relator (a): Fabio Tabosa; Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 30/06/2021).
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. IMPUGNAÇÃO À GRATUIDADE DE USTIÇA. Pleito de assistência judiciária gratuita deduzido por pessoa física desempregada. Não demonstração da efetiva desnecessidade ao benefício. Deferimento que se afigura regular. Inadimplemento pelo não pagamento das contraprestações avençadas, que é tema incontroverso. Depósito da totalidade do débito contratual realizado pelodevedor tempestivamente. Cumprimento pleno da obrigação. Reconhecimento. Boa-fé objetiva que deve preponderar. Venda do veículo no curso do processo. Dever do credor fiduciário de indenizar o seu preço de mercado, apurado pela tabela Fipe, e pagar multa correspondente ao quantum originalmente financiado. Compreensão dos §§ 6º e 7º do art. 3º do Decreto-lei nº 911/69. Improcedência do pedido inicial. Recurso desprovido, com observação”. (Apelação Cível 1014014-91.2018.8.26.0405; Relator (a): Dimas Rubens Fonseca; Data do Julgamento: 31/05/2019).
Como visto, mesmo que não seja o caso, tecnicamente, de julgamento da ação pela improcedência, tendo ocorrido o pagamento dos valores cobrados, dentro do prazo legal, não pode a instituição credora vender o veículo, sob pena de ter de arcar com todas as indenizações mencionadas.