Finalmente foi publicado o acórdão que julgou o recurso repetitivo cadastrado sob o tema 1095, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Esse, muito provavelmente, foi o julgamento mais importante, na seara do direito imobiliário, no ano de 2022.
O acórdão (decisão) trouxe novidades muito interessantes aos compradores de imóveis com garantia por alienação fiduciária, questões, inclusive, que eram inesperadas.
Quando do julgamento desse caso, muitos operadores do Direito se levantaram dizendo que a decisão favoreceu mais ao mercado imobiliário, leia-se: empresas do ramo imobiliário, do que aos compradores, os consumidores, contudo, a decisão publicada, ao meu ver, trouxe benefícios importantes aos adquirentes, conforme explicarei nesse texto.
Pois bem.
Antes de adentrar ao que foi decidido, primeiramente, é importante que você saiba exatamente do que se trata esse julgamento, quais questões estavam sendo analisadas e os seus efeitos.
E vamos a essas explicações.
O que o STJ estava decidindo no julgamento do Tema 1095?
A Corte da Cidadania, no julgamento do Recurso Especial de nº 1.891.498 – SP, um dos recursos representativos da controvérsia instaurada, buscava pacificar e estender a todo o território nacional a possibilidade ou não da aplicação do art. 53, do Código de Defesa do Consumidor quando houvesse a rescisão do contrato de compra e venda de um imóvel que tivesse garantia por alienação fiduciária.
Basicamente, esse era o ponto principal.
Não se tratava da aplicação ou não do Código de Defesa do Consumidor, como um todo, mas, apenas o art. 53, diferentemente do que muitos por aí propagaram.
O que é a alienação fiduciária?
A alienação fiduciária é uma garantia, prevista na Lei de nº 9.514/97, que estabelece um modo mais rápido e fácil de executar a dívida daquele imóvel que foi financiado, sem ter de passar por um procedimento judicial, visto que todo o processo é feito perante o Cartório de Registro de Imóveis.
Assim, caso a pessoa que contratasse esse tipo de financiamento deixasse de pagar as parcelas, não haveria necessidade de o credor entrar na justiça para retomar a propriedade do imóvel – o que leva tempo e maiores custos -, podendo adotar o meio extrajudicial da execução dessa garantia para a retomada da propriedade.
Para que houvesse a instituição dessa garantia, a própria Lei 9.514/97, em seu art. 23, caput, exigia o registro do contrato.
No procedimento da execução extrajudicial dessa garantia, a eventual devolução de valores ao comprador inadimplente, devedor, não se dava por meio do desconto de uma multa, mas apenas se houvesse um lance, em leilão, maior que o valor da avaliação do imóvel, no caso do primeiro leilão; ou, então, no segundo leilão, caso o valor do lance fosse superior ao valor da dívida.
Somente nessas hipóteses haveria, via de regra, a restituição de valores pagos. Algo diferente do que a maioria das pessoas estão acostumadas, pensando que se descontará 10%, 20% ou 30% dos valores pagos.
Frequentemente, na realização desses leilões para a execução da alienação fiduciária, o comprador do imóvel que se tornou devedor não recebia nenhum centavo pelo o que pagou, algo que trouxe inúmeros questionamentos na justiça, desaguando neste julgamento proferido pelo STJ.
O que diz o art. 53 do Código de Defesa do Consumidor?
O art. 53, caput, do CDC diz o seguinte:
Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.
Observe que, claramente, o CDC dispõe que nos contratos de compra e venda de imóvel, mesmo quando há alienação fiduciária em garantia, não pode haver o perdimento total das prestações pagas.
E esse foi o fundamento legal para que inúmeros devedores desse tipo de contrato utilizaram para questionar o resultado final da execução da garantia, quando não lhes sobrou nada em relação aos valores que foram pagos ao longo dos anos para a aquisição daquele imóvel.
O STJ, instado a se manifestar sobre essa questão e verificando a existência, no Brasil, de inúmeras decisões judiciais acerca do tema decidindo ora de uma forma e ora de maneira totalmente contrária, buscou, através do julgamento do tema 1095, por um fim a essa discussão.
A decisão do STJ no tema 1095
Sobre essa questão, o Superior Tribula de Justiça fixou a seguinte tese:
“Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.”
A fixação dessa tese não se mostrou como nenhuma novidade, conforme eu havia dito em texto publicado anteriormente que você pode ler aqui.
O Superior Tribunal de Justiça entendeu que a previsão do art. 53, do Código de Defesa do Consumidor se trata de um princípio geral de nulidade de cláusula contratual que preveja a perda da integralidade dos valores pagos pelo devedor inadimplente.
E que o art. 27, da Lei de nº 9.514/97 (norma que trata sobre os leilões de imóveis garantidos pela alienação fiduciária) prevê a obrigação do devedor restituir o valor excedente do leilão, quando houver o pagamento do crédito do financiamento.
Não haveria, dessa forma, a perda da totalidade das prestações pagas pelo devedor.
Esse procedimento dos leilões e a forma de restituição de valores, caso houvesse o pagamento da integralidade do crédito financiado, no entendimento do STJ, não contraria o previsto no art. 53, do CDC.
Além disso, foi considerado que a previsão do art. 27, da Lei de nº 9.514/97 é posterior ao art. 53, do CDC e que, também, se trata de uma norma especial, afastando eventual antinomia entre os dispositivos legais, tanto pelo critério cronológico bem como pelo da especialidade.
Assim, não se aplica o art. 53, do CDC, quando falarmos de execução da garantia fiduciária.
Não houve, nesse ponto, nenhuma novidade relevante. A posição majoritária do Judiciário, há muito, era nesse sentido.
Outras questões, muito sutis e interessantes que constaram no acórdão, que não foram muito divulgadas pela mídia jurídica, são de maior utilidade para os compradores dos imóveis.
Requisitos para aplicação da tese fixada no tema 1095
Entre essas questões importantes para os adquirentes que se tornaram inadimplentes, é fundamental entender quais os requisitos que o STJ fixou para que seja aplicada a tese do tema 1095.
Para que haja a aplicação do art. 27, da Lei de nº 9.514/97, 3 (três) requisitos são necessários a saber:
1º – O registro do contrato no cartório de registro de imóveis, 2º – O inadimplemento do devedor e 3º – A constituição em mora.
A Corte da Cidadania pôs fim a uma situação que estava surgindo, com a implantação desses três requisitos, que era a previsão, apenas em contrato particular, da alienação fiduciária, sem que houvesse o registro do contrato no Cartório de Registro de Imóveis, ao arrepio do que dispõe o art. 23, caput, da Lei 9.514/17.
Muitas empresas do ramo imobiliário, de forma muito “espertinha”, incluíam essa garantia no contrato, apenas para buscarem a aplicação da previsão do art. 27, da Lei 9.514, que é mais prejudicial ao comprador, evitando a restituição de valores, contudo, sem que esse contrato fosse registrado no cartório.
Boa parte da jurisprudência entendia que se não houvesse o registro, a alienação fiduciária não estava constituída e, portanto, não seria aplicado o procedimento previsto na Lei 9.514, determinando-se a devolução dos valores.
No STJ, porém, iniciava-se uma corrente de entendimento pela aplicação da Lei 9.514, mesmo ausente o registro do contrato, o que era uma afronta à própria lei de regência da alienação fiduciária.
Com a fixação desses três requisitos, especialmente o primeiro que exige o registro do contrato, cai por terra essa estratégia de diversas empresas, sendo necessário o registro do contrato para que a alienação fiduciária seja constituída.
O segundo ponto trata da situação em que é necessário que o comprador do imóvel, devedor fiduciário, esteja inadimplente, e essa inadimplência é a falta do pagamento das parcelas pactuadas.
O terceiro ponto é a necessária constituição em mora do devedor, ou seja, o procedimento feito via cartório no qual o devedor é intimado a pagar o valor das prestações vencidas no prazo de 15 (quinze) dias.
Não havendo a satisfação destes três requisitos, não se aplica o que foi decidido no tema 1095, conforme previsão própria do acórdão:
Portanto, a tese não abarca situações em que ausentes os três requisitos: registro do contrato com cláusula de alienação fiduciária, inadimplemento do devedor fiduciário e adequada constituição em mora.
E se todos ou algum desses requisitos não forem cumpridos, como fica?
Esse é um dos pontos mais belos do acórdão e favorável ao comprador/devedor fiduciário.
É que se não houver o cumprimento integral desses requisitos, pelo vendedor/credor fiduciário, não haverá a aplicação do art. 27, da Lei de nº 9.514, mas a aplicação do art. 53, do CDC ou artigos 472, 473, 474, 475 e seguintes do Código Civil, a depender se a relação é de consumo ou civilista, respectivamente.
Isso ficou bem claro no acórdão:
No outro extremo, se inexistente o inadimplemento (falta de pagamento) ou, acaso existente, não houver o credor constituído em mora o devedor fiduciário, a solução do contrato não seguirá pelo ditame especial da Lei nº 9.514/97, podendo se dar pelo ditame da legislação civilista (artigos 472, 473, 474, 475 e seguintes) ou pela legislação consumerista (artigo 53), se aplicável, dependendo das características das partes por ocasião da contratação.
Alude-se à aplicação da legislação civilista, pois é inegável que nem todos os contratos de compra e venda imobiliária formados com pacto adjeto de alienação
fiduciária são regidos pelo Código de Defesa do Consumidor, notadamente quando a própria legislação especial, que instituiu a alienação fiduciária imobiliária, expressamente permite no artigo 22 da Lei nº 9.514/97 que a alienação fiduciária “poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, podendo ter como objeto imóvel concluído ou em construção, não sendo privativa das entidades que operam no SFI” elencadas no artigo 2º do normativo.
É admitida, assim, a contratação entre particulares, pacto que não será de adesão, pois estarão ambas as partes em igualdade de condições, com a prevalência dos princípios da bilateralidade e comutatividade.
Apenas a falta de pagamento é considerado como inadimplemento para a aplicação do tema 1095 – anticipatory breach não é hipótese hábil para isso
Outro ponto muito interessante e favorável ao comprador que se tornou devedor é que apenas quando houver a falta de pagamento das parcelas pactuadas é que será considerado como inadimplemento.
Algumas decisões vinham reconhecendo que se o comprador, mesmo não estando com nenhuma parcela em atraso, pedisse a rescisão do contrato, se aplicaria a previsão do art. 27, da Lei 9.514, por estar configurada a quebra antecipada do contrato (antecipatory breach).
Contudo, no acórdão que se julgou o tema 1095, apenas será considerado inadimplemento a ausência de pagamento e a constituição em mora, veja-se:
Do mesmo modo, não há como prevalecer o ditame especial da Lei nº 9.514/97 quando inexistir inadimplemento do devedor ou embora existente, não tenha o adquirente sido constituído em mora nos exatos termos do procedimento especial estabelecido nos artigos 26 e 27 da Lei nº 9.514/97. Isso porque, o regramento especial estabelece, como requisitos mínimos para a sua deflagração, dívida “vencida e não paga, no todo ou em parte” E constituição em mora do fiduciante. Na falta de qualquer desses requisitos, não se afigura aplicável o procedimento especial de resolução do contrato de compra e venda de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária pelo ditame da Lei nº 9.514/97.
Não se nega a existência de precedentes no âmbito da Terceira Turma desta Corte Superior – tendo como leading case o REsp nº 1.867.209/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 8/9/2020 – no qual se precursiona que o pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia por desinteresse do adquirente, ainda que não tenha havido mora no pagamento das prestações, configuraria quebra antecipada do contrato (“antecipatory breach”), decorrendo daí a possibilidade de aplicação do disposto nos 26 e 27 da Lei nº 9.514/97 para a satisfação da dívida garantida fiduciariamente e devolução do que sobejar ao adquirente.
No que tange aos propósitos do presente julgamento, é importante mencionar que tal compreensão, amparada no instituto do anticipatory breach, a qual alarga, e muito, o entendimento do que seja inadimplemento para efeitos da lei especial não deve ser considerada na fixação da tese repetitiva.
Afinal, tal intelecção – defendida pela primeira vez em julgamento da Terceira Turma datado de 2020 – não se encontra suficientemente madura no que tange à discussão pelas Turmas, inexistindo, até o momento, debate qualificado no colegiado da Quarta Turma, tampouco quantidade significativa de julgados no âmbito da Terceira Turma.
Assim, afastada a temática afeta ao anticipatory breach e seus desdobramentos, afirma-se, categoricamente, que o inadimplemento a que se refere a legislação especial diz respeito à dívida, ou seja, ao valor não quitado referente às parcelas do financiamento ou parcelamento do montante do negócio.
Não se nega que inúmeras são as obrigações estabelecidas pelas partes em contratos de compra e venda imobiliária, sendo ínsito ao ajuste o dever de bem cumprir as determinações e encargos lá estabelecidos, ou seja, não se olvida que os contratos celebrados devem ser cumpridos (“pacta sunt servanda”), sendo a força obrigatória dos pactos consectário lógico do princípio da autonomia privada, positivado pelo legislador no art. 421 do Código Civil. Decorre da liberdade de contratar o dever de cumprimento dos pactos livremente celebrados. No entanto, o procedimento de resolução do contrato estabelecido na legislação especial só tem cabimento ante o inadimplemento, diga-se, não pagamento da dívida, no todo ou em parte pelo devedor fiduciário, por expressa disposição legal (artigo 26, caput). Não há como realizar interpretação diversa da estabelecida na lei quando tal normativo é imperativo.
Assim, o inadimplemento, para fins de aplicação dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/1997, restringe-se à ausência de pagamento, pelo devedor fiduciário, no tempo, modo e lugar convencionados (mora), não estando abrangido o comportamento contrário à continuidade da avença.
Desse modo, os julgadores Brasil a fora, quando verificarem algum inadimplemento por parte do comprador, que não seja a falta de pagamento, ou a iniciativa do próprio comprador em desistir do negócio, não poderão aplicar o tema 1095, ao caso, podendo aplicar a previsão do CDC ou do Código Civil, a depender do tipo de relação jurídica existente.
Não aplicação do tema 1095 quando a inadimplência for do próprio vendedor/credor fiduciário
De igual maneira, não haverá a aplicação do art. 27, da Lei 9.514, quando o inadimplemento for do vendedor/credor fiduciário, veja-se:
A contrário sensu, a existência de cláusula de alienação fiduciária em contrato de compra e venda não permite a aplicação dos procedimentos dos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/1997 quando se verificar eventual descumprimento contratual ou inadimplemento do vendedor/credor fiduciário.
Nessa toada:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. COMPRA E VENDA. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. REGISTRO. ESCRITURA PÚBLICA. INADIMPLÊNCIA. VENDEDOR. CREDOR FIDUCIÁRIO. DIREITO À RESOLUÇÃO. ESTADO ANTERIOR. RETORNO. PARCELAS PAGAS. DEVOLUÇÃO TOTAL. ARTS. 26 E 27 DA LEI Nº 9.514/1997. INAPLICABILIDADE. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. PREJUDICADO.
(…)
2. O registro em cartório de escritura pública de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária não obsta o direito à resolução por inadimplemento fundado no artigo 475 do Código Civil.
3. A existência de cláusula de alienação fiduciária em contrato de compra e venda não permite a aplicação dos procedimentos dos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/1997 para a hipótese de inadimplemento do vendedor/credor fiduciário.
(…)
5. Recurso especial conhecido e não provido.
(REsp n. 1.848.385/DF, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 11/5/2021, DJe de 20/5/2021.)
Assim, sendo a inadimplência do vendedor/credor fiduciário, como no exemplo de atraso na entrega da obra (um dos mais comuns), mesmo estando o contrato garantido por alienação fiduciária devidamente registrada, não haverá a aplicação da Lei 9.514 e, certamente, haverá a devolução das parcelas pagas, com o necessário pagamento de multa e outras penalidades.
Conclusão
Diferentemente do propagado por inúmeras pessoas do mundo jurídico, que o julgamento desta questão traria mais prejuízo aos compradores, vejo que o acórdão proferido, que ainda não transitou em julgado e pode ser objeto de recursos, buscou delimitar e fixar requisitos objetivos para que haja a aplicação da Lei 9.514, no que diz respeito à execução da garantia por alienação fiduciária e eventual devolução de valores ao comprador/devedor inadimplente.
Houve, de certa forma, um enrijecimento para que haja a aplicação da Lei 9.514, sendo necessário o cumprimento dos três requisitos fixados no acórdão, sob pena de se aplicar as disposições do Código de Defesa do Consumidor ou Código Civil, a depender se a relação é de consumo ou não, respectivamente.
Abriu-se, sem dúvidas, a possibilidade de que, mesmo estando o contrato com pacto de alienação fiduciária devidamente registrado, o comprador peça a desistência do negócio e receba as parcelas pagas, caso não esteja inadimplente ou não tenha sido constituído em mora, o que é um avanço muito importante para os consumidores.