Em dezembro de 2023, o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) publicou uma notícia afirmando que a falta de registro do contrato de venda de um imóvel, com alienação fiduciária, não é motivo para permitir a sua rescisão de outro modo que não seja pelo procedimento previsto na Lei de nº 9.514/97, que é o do leilão.
Eis a notícia: Falta de registro não permite ao devedor fiduciante rescindir o contrato por meio diverso do pactuado
Essa notícia repercutiu bastante, dada a sua inegável importância, especialmente para aquelas pessoas que fizeram a aquisição de um imóvel com esse tipo de condição e que buscam a sua rescisão, agora, com a finalidade de recebimento de algum valor, como restituição do que foi pago.
E muitas dúvidas surgiram acerca desse tema, naturalmente.
Nesse texto, vou te explicar detalhadamente os contornos dessa decisão e possíveis alterações no cenário jurídico de agora para frente, te informando sobre o que é importante fazer para se proteger.
A Lei da alienação fiduciária – Lei de nº 9.514/97
Não irei, aqui, fazer um compêndio sobre a lei que regula a alienação fiduciária de bens imóveis, Lei de nº 9.514/97, mas quero te trazer algumas informações sobre como é o procedimento quando uma pessoa tem o seu imóvel submetido a esse tipo de regramento legal.
Primeiramente, para a aplicação dessa lei, é necessário que exista um contrato com a previsão da instituição da alienação fiduciária e esse contrato, como diz a própria Lei de nº 9.514, em seu art. 23, precisa ser registrado no Registro de Imóveis para que seja constituído.
Geralmente, esse tipo de contrato é feito para os casos em que o pagamento do imóvel vai ser feito por meio de parcelas mensais durante vários anos, como uma garantia.
Ocorre que, após um certo prazo de pagamento, o comprador, por diversos motivos, pode não conseguir mais honrar com os pagamentos dos valores, e um desses principais motivos é o reajuste abusivo de valores, que é muito comum.
A pessoa começa com um valor x de parcela e em 2 ou 3 anos o valor inicial dobrou, o saldo devedor não reduz, etc. Veja esses outros textos que falo sobre esses aumentos exagerados de valores:
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Não conseguindo realizar os pagamentos, o credor dá início ao procedimento previsto na Lei 9.514.
Um dos primeiros passos será a notificação do devedor para que pague todos os valores em atraso, no prazo de 15 dias, caso contrário o imóvel será levado a leilão.
Não sendo feito o pagamento desses débitos, ocorre a consolidação da propriedade e o credor é autorizado a realizar os leilões.
São dois leilões, via de regra. No primeiro, o imóvel somente pode ser vendido pelo seu valor atualizado, no segundo, pode ser leiloado pelo valor da dívida.
Não aparecendo interessados, o imóvel pode ser vendido por qualquer valor e de qualquer forma, pelo credor e o devedor/comprador ainda poderá ser obrigado a pagar valores remanescentes, caso existam, conforme eu expliquei nesse outro texto, ante a entrada em vigor do Marco legal das garantias.
Onde entra essa nova decisão do STJ
Lá no começo desse procedimento.
É que, até agora, o entendimento jurisprudencial dominante, inclusive do próprio Superior Tribunal de Justiça, era no sentido de ser imprescindível o registro do contrato com alienação fiduciária para que esse procedimento pudesse ser utilizado, veja:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL COM FORÇA DE ESCRITURA PÚBLICA E PACTO ADJETO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. LEI Nº 9.514/97. AUSÊNCIA DE REGISTRO DO CONTRATO. FORMALIDADE ESSENCIAL. COMPRA E VENDA COMUM. RESCISÃO CONTRATUAL POR DESISTÊNCIA DOS COMPRADORES. DEVOLUÇÃO DAS PARCELAS PAGAS. PERCENTUAL DE RETENÇÃO – MAJORAÇÃO.
1 – Nos termos do artigo 23 da Lei nº 9.514/1997, o registro do contrato é formalidade essencial à constituição da propriedade fiduciária no contrato de compra e venda, de modo que, não comprovado o efetivo registro, não se aplica a referida lei, devendo o contrato ser rescindido pela regra geral de compra e venda e CDC. Precedentes STJ.
2 – O Colendo STJ pacificou o entendimento (Súmula 543) de que nas hipóteses de rescisão de contrato de promessa de compra e venda de imóvel por iniciativa do comprador, é devida a retenção pelo vendedor entre 10% e 25% do total da quantia paga, a título de cláusula penal compensatória.
3 – Face às particularidades do caso, quais sejam, a quantia já paga pelos autores/apelados, bem como o período em que o imóvel ficou indisponível para venda, entendo necessária a majoração do percentual de retenção para o patamar de 20% (vinte por cento).
4 ? O montante será corrigido monetariamente pelo INPC a partir de cada desembolso, acrescido de juros de 1% ao mês a contar do trânsito em julgado da sentença (Tema 1002, STJ). Apelação conhecida e parcialmente provida.
(TJGO, PROCESSO CÍVEL E DO TRABALHO -> Recursos -> Apelação Cível 5035270-68.2022.8.09.0174, Rel. Des(a). DESEMBARGADOR GILBERTO MARQUES FILHO, 3ª Câmara Cível, julgado em 09/11/2023, DJe de 09/11/2023)
APELAÇÃO CÍVEL. COMPRA E VENDA. Sentença de parcial procedência. Rescisão do contrato a pedido dos compradores. Vendedora que comprovou a execução das obras. Ausente demonstração de atraso na obra. Devolução dos valores pagos, com retenção. Contrato celebrado na vigência da Lei 13.786/2018. Aplicabilidade da retenção de 10% sobre o valor do contrato. Ausência de abusividade. Necessidade de apuração do quanto efetivamente pago. Relação regida pelo CDC, diante da ausência de registro da alienação fiduciária. Sentença mantida. RECURSO DESPROVIDO.
(TJSP; Apelação Cível 1000596-51.2022.8.26.0048; Relator (a): Lia Porto; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro de Atibaia – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/01/2024; Data de Registro: 11/01/2024)
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CIVIL. CONSUMIDOR. AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO PARTICULAR DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL C/C PEDIDO DE DEVOLUÇÃO DAS QUANTIAS PAGAS. CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. AUSÊNCIA DE REGISTRO. GARANTIA NÃO CONSTITUÍDA. INCIDÊNCIA DO CDC.
1. No julgamento do REsp 1891498/SP e do REsp 1894504/SP, submetidos ao rito dos recursos especiais repetitivos, a Segunda Seção, por unanimidade, em 26/10/2022, fixou a seguinte tese: “em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor”.
2. “Na ausência de registro do contrato que serve de título à propriedade fiduciária no competente Registro de Imóveis, como determina o art. 23 da Lei 9.514/97, não é exigível do adquirente que se submeta ao procedimento de venda extrajudicial do bem para só então receber eventuais diferenças do vendedor” (REsp n. 1.982.631/SP, Terceira Turma, julgado em 24/5/2022, DJe de 22/6/2022).
3. Na hipótese dos autos, partindo dos fatos delineados pelo acórdão recorrido, constata-se que não houve o referido registro no Cartório de Registro de Imóveis, motivo pelo qual a resilição do contrato por vontade do consumidor deve ser regulada pelas normas do CDC, afastando-se o regime especial da Lei 9.514/97.
4. Agravo interno não provido.
(AgInt no REsp n. 2.020.649/GO, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13/3/2023, DJe de 15/3/2023.)
Caso não houvesse o registro, não estava constituída a alienação fiduciária e a rescisão do contrato de compra e venda de um lote ou apartamento na planta, poderia ocorrer aplicando uma multa sobre o valor pago, devolvendo-se o restante.
Qual é o prejuízo do comprador com a aplicação desse entendimento?
Muito grande. É gigantesco.
Isso porque a aplicação do procedimento previsto na Lei 9.514, na maior parte das vezes, resulta em nenhum valor a ser restituído ao comprador que perdeu o seu bem. E, agora, com as alterações trazidas pelo Marco legal das garantias, há grandes chances de o comprador que desistiu de o negócio ainda ficar com dívida perante o credor, mesmo devolvendo o bem e não ter ficado inadimplente.
Além disso, esse procedimento, que não é somente aplicado em caso de inadimplência, mas, também para a situação em que o comprador, embora tenha pago todas as parcelas corretamente, simplesmente não queira mais continuar com o contrato.
Diferentemente do cenário anterior, onde ele receberia, provavelmente, entre 90% a 75% do valor pago, agora, a chance de receber quaisquer valores é próxima a 0 e ainda existe boa chance de ele ficar inadimplente e passar a dever uma quantia significativa para o credor, quando todos os custos de cartório, leiloeiro e demais valores forem somados.
Essa decisão do STJ é de aplicação obrigatória?
Não.
Essa decisão foi proferida pela Segunda Seção do STJ, que é um órgão importante, contudo, o julgamento foi de um recurso isolado, não julgado pelo rito dos recursos repetitivos, que é o meio legal utilizado para aplicação obrigatório do entendimento firmado para os demais casos.
Conquanto a decisão não seja do tipo vinculante, ou seja, de seguimento obrigatório pelos demais Tribunais, ela traz um norte para onde a jurisprudência do Tribunal que detém a última palavra sobre esse assunto caminhará.
É possível que, de agora para frente, embora os tribunais estaduais apliquem o entendimento antigo, não permitindo que sejam aplicadas as normas da Lei 9.514 para os contratos não registrados, quando os recursos dessas decisões chegarem ao STJ, haja a sua modificação.
Orientações para os compradores
Portanto, aqui vão algumas dicas:
Antes de assinar qualquer contrato de compra e venda, procure um advogado especialista, que entenda profundamente desse assunto para que possa te esclarecer sobre o documento.
Não basta você entender as palavras escritas no instrumento, você precisa compreender os seus efeitos jurídicos, algo que, dificilmente, o vendedor irá te explicar com transparência e detalhamento.
É muito mais barato o prevenir do que o remediar.
Aos que já adquiriram o imóvel e pensam em desistir: é preciso estar ciente de que, eventualmente, no seu caso, o STJ pode aplicar esse entendimento. Talvez, valha a pena fazer um acordo no seu processo para evitar esse tipo de decisão que pode resultar em um grande prejuízo.